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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Por um mundo relativamente relativista

| 30.04.24 - 07:57 Por um mundo relativamente relativista O filósofo francês Bruno Latour, falecido em 2022 (Fonte: Wikimedia).

Terraplanismo, antivacinismo, ceticismo em relação às mudanças climáticas, crença em práticas médicas não comprovadas. É curioso como a desconfiança em relação ao conhecimento científico une uma parte considerável da esquerda e da direita, mesmo em um mundo polarizado.
 
Pesquisa do Datafolha, publicada no último dia 24, por exemplo, mostra que um percentual semelhante de pessoas que votaram em Lula e Bolsonaro em 2022 acreditam que a terra é plana - 7% entre os que escolheram o atual presidente e 8% daqueles que preferiram o inelegível.
 
Tenho familiares próximos - bolsonaristas - que não se vacinaram contra a Covid-19. Os motivos, em geral, remetem a teorias conspiratórias que envolvem o governo chinês e a ciência nada confiável das indústrias farmacêuticas. Conto, entretanto, também, com amigos - lulistas - que não vacinaram seus filhos contra algumas doenças. Suas razões se fundamentam em geral em estudos obscuros que relacionam vacinas a autismo ou que falam de um perigoso teor de mercúrio em suas fórmulas. 
 
O que explica essa desconfiança, quando não um antagonismo aberto, em relação à ciência, que parece tão característica de nosso tempo?
 
É muito provável que, se a mesma pesquisa Datafolha perguntasse a esses 15 por cento de brasileiros terraplanistas (ou aos antivacina ou aos que não creem nas mudanças climáticas) sua opinião sobre os rumos da humanidade ou do Brasil, a resposta revelaria altos níveis de pessimismo e desilusão. 
 
A descrença no conhecimento científico parece se enraizar sempre em um grande mal-estar com o estado das coisas que é, na verdade, um incômodo profundo com a modernidade. É dessa condição difusa de descontentamento que fala, de certa forma, Sigmund Freud em sua obra seminal O Mal Estar na Civilização. Ali, entretanto, esse mal-estar resulta essencialmente da repressão ao desejo individual imposta pelos códigos morais que permitem a vida em sociedade.
 
Todavia, a modernidade sobrepôs a esse aspecto básico da civilização, que produziu uma clivagem inconciliável entre o ser humano e seu desejo, outra ruptura, aquela entre sociedade e natureza. É a crise aguda desse pilar de nossa visão de mundo que parece estar na base das angústias contemporâneas, entre elas, essa que dá origem ao questionamento da ciência e a toda sorte de teorias conspiratórias que colorem a política polarizada de nossos dias.
 
Mas o que é a modernidade, afinal?
Ela é a época e a visão de mundo que se consolidaram a partir do agitado século XVIII. Essa visão de mundo foi o amálgama de todas as revoluções ocorridas naquele momento: revolução de ideias, revolução econômica e revoluções políticas. Iluminismo, Revolução Americana, Revolução Francesa, Revolução Industrial. 
 
Claro que, antes disso, suas raízes remetem ao Renascimento e à Revolução Científica, entre os séculos XIV e XVI, quando a experimentação e a razão passaram a ser valorizadas como métodos de conhecimento, e a intensa atividade intelectual de gênios como Galileu, Copérnico, Kepler e Newton fez ruir a religião como elemento ordenador da sociedade e garantidor da política e introduziu crescentes dúvidas sobre a importância e lugar do ser humano no universo.
 
A mesma modernidade estabeleceu essa rígida separação entre natureza e sociedade que é a base de nosso entendimento do que são, ao mesmo tempo, o conhecimento e a política. A clivagem ganha sua melhor expressão na conhecida Alegoria da Caverna, descrita por Platão no Livro VII de A República.
 
Nela, os seres humanos encontram-se presos e confusos no interior de uma gruta, onde tomam as sombras projetadas nas paredes por uma fogueira como a própria realidade. Nessa condição, reinam a balbúrdia e infindáveis conflitos produzidos pela subjetividade que orienta as opiniões de cada um a respeito das sombras. Surge então a figura do sábio, que convida os seres humanos a saírem da caverna para dar-lhes acesso à luz do Sol, do lado de fora, verdadeira fonte do conhecimento. Com isso, estabelece-se a ordem entre eles.
 
O genial filósofo e epistemólogo francês Bruno Latour, precocemente falecido em 2022, mostra como essa ideia de uma rígida separação entre o humano e a fonte de um conhecimento superior e objetivo é estruturante para nossa cultura. Para nós, há a sociedade, reino de subjetividades inconciliáveis, e a natureza, mundo objetivo, regido segundo leis universais e imutáveis e fonte da verdade.
 
Todavia, ao estabelecer essa ideia de um conhecimento universal e objetivo, a modernidade produziu, como consequência, um curto-circuito político. Se é a Ciência, com cê maiúsculo, a responsável por colocar fim à balbúrdia dos humanos, conciliando as infinitas subjetividades, o que resta para a política?
 
E ainda assim, tão central quanto a ciência, é a ideia de democracia para a modernidade. Afinal, é também a supremacia da razão que põe fim aos regimes absolutistas ancorados nas religiões e herdados da Idade Média. É o objetivismo que leva à separação entre esfera pública e privada e à ideia de direitos individuais e de liberdade de expressão. 
 
Como pode nosso tempo ter se erguido em torno de duas ideias que, no limite, são inconciliáveis?
 
Afinal, se a Ciência tem um acesso privilegiado à verdade, sobre que fundamento se sustentam a política e a democracia? E é esse de fato o estado de coisas na caverna de Platão: deixados a seus próprios meios, os seres humanos não se entendem. Só o sábio e seu tipo especial de conhecimento trazem o remédio para a vida em sociedade.
 
O mal-estar contemporâneo com a ciência é apenas outra face do mal-estar contemporâneo com a política. Desconfiados da ciência, desconfiamos da democracia. O flerte com o autoritarismo não é se não outro lado do negacionismo científico.
 
A boa notícia, entretanto, é que não há nada de novo sob o Sol, nem algo errado com a ciência e a democracia - exceto a ideia segundo a qual conhecimento e política se situam em esferas separadas e incomunicáveis da realidade.
 
Qualquer etnógrafo iniciante que se lança a seu primeiro trabalho de campo em uma aldeia amazônica sabe de antemão que isso não corresponde ao que encontrará. Ele chega ali já entendendo que, entre os ditos "povos pré-modernos", não existe separação entre a forma pela qual os seres humanos adquirem conhecimento e a maneira pela qual se organizam em sociedade. Conhecimento e política, mito, trabalho e família formam um todo onde não é possível dizer onde termina um e começa o outro.
 
Nunca foi diferente em nossas sociedades. 
 
O horror então? Todo conhecimento é subjetivo? Já não há como nos entendermos? Talvez a própria realidade física seja uma criação de nossas mentes? 
 
Não, enquanto seguimos saltando entre esses dois extremos - objetividade e subjetividade, universalismo absoluto e relativismo total - continuamos presos ao Mito da Caverna. Precisamos nos livrar dele de uma vez por todas.
 
A produção de conhecimento e a política na verdade nunca estiveram separados, são apenas duas faces do mesmo processo através do qual construímos nosso mundo comum. A ciência, nesse sentido, é mais uma progressiva construção de consensos a partir da mobilização de elementos humanos e não-humanos do que a revelação da verdade oferecida por um acesso privilegiado aos não-humanos. 
 
E a política, o que é? 
Bem, também uma dinâmica progressiva de construção de consensos a partir da mobilização de  elementos humanos e não-humanos, mais do que a pacificação dos humanos a partir de elementos exteriores artificialmente construídos - como direitos, garantias e princípios.
 
O mal-estar com a ciência não parece totalmente desprovido de razão, pois é um desconforto com uma ideia antiquada e absolutamente enganosa do conhecimento. Ele é na verdade a angústia resultante da percepção de que não há verdades absolutas, conforme nos prometeram. A boa notícia, entretanto, é a de que, abandonando por completo a Alegoria da Caverna, tampouco estamos condenados à subjetividade absoluta. 
 
Perguntado, certa vez, se era um relativista, Bruno Latour respondeu: "Claro que sim, pois o oposto do relativismo é o absolutismo; não sou, entretanto, um relativista absoluto, sou um relativista relativo".
 
Reunidas, ciência e política restam fortalecidas. A democracia parece afinal possível. A razão absoluta deixa de nos oprimir e esvaziar o mundo de sentido. O mistério readquire seu devido lugar. Uma ciência humilde é mais reconfortante que o reino gelado da racionalidade total. Institui-se, quem sabe, enfim, uma esfera pública verdadeira onde aos seres humanos restará apenas conciliar suas diferenças, mediadas por esse modo de conhecer que obriga-os a conversar entre si e também com os não-humanos, a natureza. 
 
Talvez então as múltiplas crises - crise ecológica, crise da democracia, crise de identidade, crise de sentido - possam encontrar seu fim.
 
Que mundo será esse pós-pós-moderno? Não sabemos, mas ele está logo ali.

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