O Endurance, navio de Ernest Shackleton, preso no gelo antártico (Foto: Frank Hurley/Domínio Público).
O psicanalista Contardo Calligaris
costumava afirmar que o desejo do homem - e aqui falamos do gênero masculino - é mediado pela ideia de aventura. Nesse sentido, para aquele que se identifica como homem, portanto, a vida só ganha sentido se puder ser vivida como aventura. Dizia ele que, para nós, "a vontade de aventura é imperiosa, desesperada e estranhamente abstrata".
Lembrei-me disso por esses dias porque planejo, com meu filho, um de meus irmãos, um amigo e o filho dele, uma viagem de carro à Patagônia no fim do ano. O plano é passar um mês na estrada, entre Goiânia e o Parque Nacional Torres del Paine, no Chile, parando em vários lugares.
Citando o filósofo Giorgio Agamben, Contardo diz que a palavra "aventura" designa "tanto a prova pela qual passamos como, indissociavelmente, o relato de nosso teste. Os percalços da vida só se tornam realmente nossas aventuras quando conseguimos incorporá-los na nossa história. Em outras palavras, a vida é aventura (e é boa) quando ela merece ser narrada."
Impossível não relacionar a reflexão de Calligaris à do pensador britânico
G. K. Chesterton, que já mencionei neste espaço. Para falar do sentido da vida, Chesterton invoca a parábola de um navegador que parte velejando de sua terra natal e se perde no oceano. Quando finalmente encontra terra, o sujeito pensa estar em uma ilha selvagem e desconhecida, quando, na verdade, sem saber, retornara a seu próprio país.
Para Chesterton, esse navegador de
Schrödinger (a piada aqui é minha, e não do autor), no estado único de poder se sentir ao mesmo tempo em casa e em uma grande aventura, é aquilo que devemos almejar para nossas próprias vidas, isto é, a união do conforto e segurança de um lar à curiosidade perene que só o desconhecido oferece.
Nesse sentido, discordando de Contardo, acho que o desejo de aventura não é específico dos homens, mas sim inerente ao humano. A possibilidade de sentido, não importa se mulher ou homem, só surge na possibilidade desse encontro precário e instável entre deitar raízes e buscar autonomia, entre a segurança e o risco, entre o familiar e o estranho, entre a luz e a escuridão, entre o conhecido e o misterioso.
A localização dessa fronteira, entretanto, é sempre pessoal e absolutamente relativa. Afinal, não nos referimos à ciência como uma "aventura"? E Júlio Cortázar não propõe que sair de casa para comprar o jornal na esquina pode ser igualmente uma jornada cheia de riscos?
Nossa viagem de carro à Patagônia e as trilhas que faremos são uma grande aventura para nós, mas certamente um passeio tedioso para alguém como
Reinhold Messner, o escalador austríaco que foi a primeira pessoa a escalar as 14 montanhas com mais de oito mil metros, e também o primeiro a subir o Everest sozinho e sem oxigênio. Ou, para ficarmos mais próximos de casa, uma excursão medíocre para um Marechal Rondon, a quem o presidente americano Theodore Roosevelt considerou como um dos cinco maiores exploradores da história humana. Afinal, para Messner e Rondon, o Himalaia e a Amazônia eram, em larga medida, suas casas.
Sir Ernest Shackleton, o capitão inglês, propôs-se, em 1914, a fazer a primeira travessia a pé do continente Antártico, mas sequer chegou a começá-la. Em dezembro daquele ano, seu navio, o Endurance, ficou preso em um banco de gelo e a tripulação precisou vencer o inverno polar e esperar nove meses para tentar voltar a navegar.
Todavia, quando o gelo finalmente começou a ceder, o barco foi esmagado pela pressão das placas e afundou. Em abril de 1916, depois de mais de um ano vivendo no gelo à base de focas, pinguins e dos cães da expedição, Shackleton decidiu partir, com cinco de seus homens, em um pequeno bote de 6 metros, para um jornada de 1.300 quilômetros pelo oceano mais feroz do planeta até as Ilhas Geórgia do Sul em busca de resgate.
Dezessete dias depois, ao chegarem à ilha, entretanto, constataram que tinham aportado do lado errado e ainda precisaram fazer uma travessia de quase 200 quilômetros através de uma cadeia de montanhas geladas. Conseguiram então que os companheiros que tinham deixado para trás fossem resgatados. Nenhum dos 28 homens de Shackleton pereceu nos 16 meses que passaram na Antártica e sua história é considerada umas das maiores narrativas de aventura e sobrevivência de todos os tempos.