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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Quando o caos irrompe

| 20.08.24 - 08:35 Quando o caos irrompe ATR-72 da Voepass (Foto: Divulgação)
Sou apaixonado por aviões. E quem não é? Mesmo aqueles que têm medo de voar guardam um olhar de reverência e admiração por esse artefato que, em larga medida, simboliza as mais altas aspirações humanas.
 
O avião é o grande símbolo da modernidade, a prova, de certa maneira, de que podemos, por nossa capacidade e engenho, nos libertar daquilo que prende o ser humano ao solo, vencendo a própria Lei da Gravidade. Voar, assim acreditamos, é uma das provas de que nos emancipamos, vencemos a natureza. Ela não nos subjuga mais.
 
Não tivesse um defeito congênito de visão, seria grande a chance de que eu tivesse me tornado piloto. Quando não tenho nada para fazer, abro o Flight Radar no celular e acompanho os voos em todo o planeta: de onde vêm? Pra onde vão? Que aeronave é essa? A quantos mil pés está? Qual o avião mais a norte no planeta neste instante? 
 
Já disse, em outro texto, que, ao contrário da maioria, adoro os aeroportos. Também gosto muito de viajar e acompanhar o andamento do voo - o acionamento dos flaps, dos ailerons, o início da descida, a aproximação, o tranco do trem de pouso sendo acionado, o toque na pista, a reversão dos motores. Sigo dezenas de perfis de aviação no Instagram e, como todo aficionado, tenho um gosto mórbido por documentários sobre acidentes aéreos.
 
Em função disso, entendo por que nos abalam de maneira tão singular acidentes como o do ATR-72, entre Cascavel e Guarulhos, no último dia 9.
 
São, claro, todas as vidas abreviadas, os amores brutalmente interrompidos, as famílias destroçadas, o trauma de tanta gente, suas feridas e o luto. 
 
Para além disso, entretanto, um desastre como esse nos impacta de fato por outro motivo: ele torna impossível negar o papel do caos em nossas vidas. Um acidente aéreo questiona uma das narrativas mais importantes que usamos para dar algum sentido à realidade: a ideia de que, por meio da Ciência e da técnica, controlamos as leis da natureza e nos emancipamos de suas garras.
 
A tentativa de negar esse papel do caos se reflete na péssima qualidade da cobertura jornalística sobre o assunto, que parte imediatamente em busca de culpados e melodramatiza uma situação complexa e intrincada para tentar tornar legível e explicável aquilo que, de certa forma, não o é. 
 
Foi o gelo. Foi a falta de manutenção. Foi a inoperância dos órgãos fiscalizadores. Foi a ganância e irresponsabilidade da empresa. Onde há mais de 60 vítimas, deve haver um culpado.
 
E talvez haja de fato responsabilidades a serem imputadas, falhas humanas a se punirem e crimes que mereçam investigação e julgamento. Mesmo assim, entretanto, não há como negar que a queda de um avião é fruto da conjunção altamente improvável de uma série de fatores aleatórios. No dia 9 de agosto de 2024, por volta das 13h28, coisas como circuitos defeituosos, inúmeras decisões de piloto e copiloto, escolhas feitas por mecânicos e burocratas, condições meteorológicas, e assim por diante, juntaram-se de forma muito improvável para que um avião robusto e posto à prova despencasse, daquela maneira aterradora que todos vimos, sobre um condomínio de chácaras no interior de São Paulo.
 
Se olharmos para as vidas individuais dos passageiros e tripulantes, somam-se ainda mais e mais fatores improváveis que revelam todo o caos na base de nossas vidas. Cada um deles poderia ter escapado se tivesse feito outras pequenas escolhas diferentes ou se outros eventos inesperados interviessem em seu caminho - um táxi perdido, uma chave esquecida, um despertador que não tocasse, uma noite mal dormida, um voo antes ou depois, um atraso naquele voo que mudasse as condições do tempo, uma volta a mais em um parafuso, um pensamento diferente na cabeça do piloto que o levasse a escutar 30 segundos antes o ruído diferente dos motores do avião prestes a perder sustentação. De outro lado, um toque a mais do comandante no manche durante a queda descontrolada e o ATR teria caído sobre aquela casa e matado seus moradores. Tudo poderia ter sido diferente, mas não foi. 
 
Numa tarde qualquer de sexta-feira, os fios do destino se entrelaçaram daquela maneira única e aleatória que levou a um avião destroçado e 62 vidas perdidas.
 
Os dias passam, nós nos esquecemos do trauma e guardamos a ofuscante verdade que revelada pela tragédia nos cantos distantes do coração e da mente. O caos, não obstante, segue operando.
 
Enquanto ele não me surpreende, sigo voando e me impressionando a cada vez que, a quase 300 km/h, um Boeing de 80 toneladas aponta seu nariz para o alto e se descola do chão rumo às nuvens.

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