Querido Gabigol,
Só posso começar te agradecendo. Não há palavras para explicar o que você me proporcionou. É estranho, na verdade, pensar que possivelmente já vivi o dia mais feliz da minha vida, cogitar que provavelmente nunca mais, nos anos que me restam, viverei sensações tão intensas quanto aquelas de 23 de novembro de 2019. E aquilo não aconteceu do nada. Foi a coroação de seis meses mágicos, em que a vida se media pelos intervalos entre as partidas da Libertadores e do Brasileirão, quando cada jogo trazia a expectativa de uma performance ao menos tão encantada quanto a anterior, e quando essa expectativa sempre se cumpria.
Eu me lembro muito bem de tudo. Havia, claro, no início, uma profunda sensação de desconfiança, pois ser flamenguista era viver de empenhar sempre a mesma ilusão de grandeza diante de uma realidade de seguidas frustrações. Mas, como não recordar, foi no último jogo do primeiro turno que a gente abandonou qualquer resquício de ceticismo e a magia inundou o cotidiano - foi naquele golaço contra o Santos. Você viu o Everson adiantado, deu um corte no Gustavo Henrique ainda fora da área, e meteu milimetricamente por cobertura.
A intensidade emocional que se seguiu é difícil de descrever, assim como o nível do futebol jogado. As quartas de final da Libertadores contra o Inter, os jogos memoráveis pelo Brasileirão, como aquele 4x1 contra o Corinthians e o 4x4 contra o Vasco, sem deixar de mencionar o 5x0 contra o Grêmio na semifinal demonstrando uma superioridade absurda contra o time que dois anos antes vencera a Libertadores.
E então, fomos para Lima. Há ainda algo que caiba ser dito sobre aquela final? Talvez a maior final da Copa Libertadores de todos os tempos? Um roteirista experiente não seria capaz de escrever uma narrativa como aquela - e nela, o protagonista foi você. O empate aos 43 do segundo tempo, a vitória aos 47, quando a torcida cantava entusiasmada “Em dezembro de 81…” e os locutores e comentaristas, pegos de surpresa, ainda falavam da loucura de seu gol anterior.
Queria não usar clichês, mas há momentos na vida e na história do futebol que excedem a sobriedade e os recursos de quem narra, deixando-os como única possibilidade. Tudo naquele dia ficou envolto em névoa, Gabi.
A imensa expectativa. Esperamos aquele sábado como vejo meus filhos anteciparem a chegada de seus presentes de Natal. Foi uma data esperada, planejada, saboreada. Mas, como em toda grande aventura, tudo ficou por um fio. Fomos ao canto mais escuro e profundo da caverna e de lá fomos resgatados pela tenacidade e persistência do herói. A incredulidade e a explosão de alegria eternizadas na genial narração do João Guilherme: “Olha a virada, Gabriel! Incrível! Incrível! Toca a música, é gol do Mengão! Épico! Memorável! O maior momento da história do Flamengo! Eu só acredito porque estou narrando!”
Foi épico. Não há outra palavra. Você nos propiciou a rara oportunidade na vida de vivermos - e fazê-lo com plena consciência - uma história épica. Foi épico e inacreditável justamente porque sabíamos que era épico enquanto vivíamos.
Ainda tive o privilégio, Gabriel, de nos ombros do meu pai ver Zico no Maracanã. O Felipe, meu filho, nos meus ombros, viu você - e, nos ombros dele, estava um boneco do Gabigol.
Por isso tudo, meu caro, foi triste ouvi-lo dizer que está encerrando sua história no Flamengo. Mas foi muito bom vê-lo encerrando-a bem a seu estilo - por cima, renascendo e malandramente tirando onda com a cara dos fariseus do futebol, que tratam nossa grande paixão com a frieza dos burocratas e a tristeza dos números.
Nossa torcida é apaixonada e é preciso relevar a raiva de parte dela com você nesses últimos tempos. O que não se pode perdoar é a maneira como essa diretoria te tratou. Mas eles vão passar. Em dois anos, ninguém se lembrará de seus nomes. Já você, meu caro, será eternamente lembrado como um dos maiores nesse que é um dos maiores do mundo. Jamais será esquecido.
Muito obrigado, Gabigol.