Tenho dito que a crise que vivemos não se relaciona somente à insatisfação das pessoas com a democracia. Ela é expressão também de uma profunda desconfiança em relação à ciência e ao papel que desempenha em nossa sociedade.
Na semana que passou, ganhou as páginas dos jornais, a bizarra
condenação das cientistas
Ana Bonassa e Laura Marise, pela 1ª Vara do Juizado Especial Cível de São Paulo - o delito das duas, a publicação de um vídeo desmentindo afirmações de um nutricionista em rede social de que o diabetes é causado por verminoses e vendendo um tratamento de desparasitação como cura. Além de obrigadas a retirar o vídeo do ar, as duas terão que pagar indenização por danos morais. Elas pretendem recorrer da sentença.
O diabetes, como se sabe, é causado por múltiplos fatores - genéticos e alimentares, entre outros -, mas não tem qualquer ligação com vermes.
É fácil, entretanto, nos indignarmos contra esse absurdo ou outros tipos de negacionismo e propagação de conhecimentos absolutamente falsos ou controversos. Todavia, a proliferação de situações desse tipo deveria fazer com que nós, que valorizamos o conhecimento científico, refletíssemos, antes de contra-atacar ou assumir uma posição de desdém e superioridade moral.
A ideia de neutralidade e objetividade da ciência é basilar para a narrativa do progresso ilimitado que fundou e ainda sustenta a sociedade em que vivemos. Em linhas gerais, essa visão diz que a ciência é uma forma única e superior de conhecimento que libertou a humanidade da prisão da natureza. Pelo acesso privilegiado que o método científico oferece às leis naturais, o ser humano conseguiu manipular a realidade e se emancipou. Não somos mais reféns da natureza. Deixamos há muito de viver ameaçados por ela e criamos uma sociedade de afluência e riqueza material.
A ciência, nesse mito fundante da modernidade e do capitalismo, é neutra. Ela simplesmente revela fatos da natureza e não pode, portanto, ser questionada pelo uso que se faz daquilo que descobre ou inventa com base neles. Os efeitos negativos de tecnologias como bombas, metralhadoras, granadas, defensivos agrícolas, alimentos ultraprocessados, ou usinas hidrelétricas não podem ser debitados na conta da ciência. Isso colocaria em xeque sua neutralidade e prejudicaria a descoberta de novos fatos e o desenvolvimento de tecnologias que beneficiarão a humanidade.
Não obstante, o acúmulo de "efeitos colaterais" ou de "externalidades" - como gostam de dizer os economistas -, culminando agora com os efeitos das mudanças do clima, torna inevitável o incômodo e o questionamento dessa suposta neutralidade.
É preciso ser muito ingênuo para não perceber a estreita conexão entre a ciência e um sistema econômico que não apenas insiste em não cumprir suas promessas de igualdade, como hoje nos coloca diante da possibilidade de colapso das próprias condições que sustentam a vida no planeta.
Nesse sentido, nós cientistas e aqueles que valorizam a ciência como base de uma vida social fundada na razão, precisamos entender que a condenação de Ana Bonassa e Laura Marise - ou a defesa da cloroquina ou o terraplanismo ou o movimento antivacina - é apenas sintoma, e não causa do problema que precisa ser combatido.
Não podemos mais nos escudar sob o manto da neutralidade e virar as costas para a captura da ciência por interesses econômicos e políticos que mantêm e aprofundam as desigualdades sociais, insistindo também em padrões de produção e consumo que estão levando o planeta ao colapso. Sobretudo, precisamos compreender que a raiz da desconfiança, quando não da revolta aberta, em relação à ciência tem a ver precisamente com o fato de que a ideia de um conhecimento neutro e objetivo produz uma relação autoritária que faz calar as vozes daqueles que são afetados pelas tecnologias ou por decisões políticas "cientificamente embasadas".
Por isso, a filósofa belga
Isabelle Stengers insiste na necessidade de uma "
desaceleração das ciências". Como diz ela: "Desde o século XIX, quando a história passa a ser situada sob o signo do progresso, institui-se uma 'ciência rápida', mobilizada pelo dever de fazer o conhecimento 'avançar', como um exército para o qual tudo aquilo que poderia desacelerar sua marcha é visto como obstáculo".
Não obstante, "critérios objetivos", explica ela, deslegitimam a subjetividade, a inteligência e a capacidade de pensar justamente daqueles que são mais afetados pelos impactos das ações tomadas com base nessa suposta objetividade.
A filósofa da Ciência Isabelle Stengers (Foto: Wikimedia)
É esse o caso, por exemplo, da implantação de grandes usinas hidrelétricas ou agora de parques solares e eólicos justificados exatamente pela necessidade de uma transição energética para mitigar o aquecimento global. Por mais que, nesses casos, em tese, a lei preveja processos de consulta e escuta dos impactados, todos sabemos que projetos como esses apenas raramente recuam diante de tais efeitos, e são legitimados justamente com base em argumentos científicos e técnicos.
Quantas vezes a própria conservação da natureza, também alicerçada em razões da ciência e pela necessidade de manter a integridade de ecossistemas, não impacta também de forma negativa as comunidades indígenas e tradicionais que dependem dos recursos naturais e que quase sempre ajudam na verdade a manter íntegros esses mesmos ecossistemas?
E o que dizer da ciência econômica, "a mais científica das ciências sociais", que legitima tantas vezes a ideia de que o mercado resolve melhor a organização da sociedade do que a intervenção do Estado? A depender da neutralidade de muitos economistas não teríamos o Sistema Único de Saúde que, com todas as suas imperfeições, é fundamental para milhões de brasileiros e mostrou sua importância durante a Pandemia.
Da mesma forma, a despeito de que as medidas de isolamento social fossem a decisão mais correta diante do desconhecimento em relação à Covid-19, o que provocou indignação em parte da sociedade não foi um impulso suicida, mas essa mesma sensação de impotência provocada por um conhecimento visto como autoritário e que se impõe de forma generalizada e sem consideração pelas circunstâncias particulares da vida de grupos ou indivíduos.
Sobre isso, porque antevejo as sobrancelhas arqueadas, não acho que se deveria ter feito outra coisa, mas o buraco é bem mais embaixo. Como nunca dialogamos, nem concedemos voz, em nenhuma circunstância, às partes afetadas, no momento em que precisamos invocar confiança na ciência para medidas drásticas, ela já não existe.
Não se trata aqui, tampouco, de dizer que toda e qualquer ciência sirva à produção da desigualdade social e da degradação ambiental. A ciência oferece conhecimentos que são fundamentais para a vida e a dignidade humanas. Ela também serve a lados bons de batalhas importantes, incluindo, por exemplo, a concepção do próprio SUS, a defesa da demarcação das terras indígenas ou ainda a produção de vacinas em tempo recorde em 2020. Todavia, não se pode negar que o mito da neutralidade, da objetividade e de sua superioridade é elemento fundante do edifício em ruínas de nossa sociedade. É ele que possibilita colocar essa mesma ciência a serviço do que de pior a humanidade produz.
É claro que soa utópico, quando saímos de nosso estado de negação, pensar em retomar a ciência e colocá-la a serviço de uma experiência coletiva melhor e verdadeiramente democrática. Mas a opção seria, como avestruzes, continuarmos enfiando a cabeça no buraco. A sociedade precisa ter voz e opinião na avaliação da qualidade de todo conhecimento.
Para terminar numa chave mais otimista, como disse Bruno Latour, estamos saindo da era da Ciência com cê maiúsculo e entrando na época das ciências e da pesquisa, onde "às controvérsias políticas juntam-se as controvérsias científicas. Em lugar de definir uma ciência por sua desconexão, a definimos por suas conexões. Em lugar de reconhecer uma ciência pela exatidão absoluta de seu saber, reconhecemo-la pela qualidade da experiência coletiva que proporciona"
Ou desaceleramos a ciência e fortalecemos o debate democrático ou casos como os de Ana Bonassa e Laura Marise serão cada vez mais comuns.