Sabe por que a democracia é provavelmente a melhor ideia que o ser humano já teve?
Porque ela parte do pressuposto de que não correspondemos aos ideais que gostamos de cultivar a respeito de nós mesmos. Não somos necessariamente bons, inerentemente solidários, não há de antemão um futuro luminoso nos esperando, o progresso não está garantido.
Não se trata tampouco de dizer que somos inescapavelmente maus ou egoístas e que essa tendência inata precise ser contida - há nisso uma discussão infrutífera e complexa sobre a divisão entre natureza e sociedade que é um beco sem saída. Mas o fato é que a vida coletiva é desafiadora e que ideais, nesse sentido, nunca foram garantias para uma convivência mais frutífera. Ao contrário.
Sim, não há humanidade possível sem ideais, sem um projeto de futuro, um lugar almejado aonde desejamos chegar - como indivíduos ou como sociedade. Todavia, foi sempre algum tipo de ideal que produziu aquilo que de pior nossa espécie foi e segue sendo capaz.
Pense em qualquer atrocidade e haverá sempre um ideal a justificá-la: os genocídios coloniais, a escravidão, o Holocausto, os gulags soviéticos, o 11 de setembro, Hiroshima e Nagasaki, o Apartheid, Holodomor, a Revolução Cultural Chinesa, todos os mortos e torturados de todas as ditaduras latino-americanas, o 7 de Outubro do Hamas, a reação israelense a ele - tudo produzido por ideais, histórias que inventamos para justificar que certas pessoas dominem outras e que pavimentam o caminho do sofrimento, da crueldade e da morte.
A democracia surgiu por acidente quando pessoas cansadas de terem seus traseiros chutados por pessoas que justificavam seus chutes com base em ideais - em geral, um direito divino que as tornava melhores que as outras - se juntaram e desistiram de idealizar a si mesmas por um instante. Com isso, pensaram um conjunto de regras que estabelecesse proteções exatamente contra os ideais uns dos outros.
Justamente por isso, a democracia não deve ser vista como um ideal. Ela é uma frágil engenharia social que se coloca como valor supremo para que os ideais não nos destruam - é um mecanismo que coloca em pé de igualdade todos os ideais e os força à negociação, esperando que disso resulte a melhor vida coletiva possível.
Eu não sabia direito o que era a democracia até conviver de perto com políticos. Percebi então que eles faziam discursos nos palanques e púlpitos se atacando - por vezes, eu temia que pudessem se matar uns aos outros -, mas depois tomavam café, davam-se tapas nas costas, perguntavam-se se as respectivas famílias iam bem e se despediam com um “Fica com Deus”.
Churchill supostamente teria dito que as pessoas não devem saber “como as salsichas e a política são feitas”. Sobre as salsichas, realmente parece conveniente preservar nossa ignorância. Em relação à política, todavia, e, por extensão, à democracia, ao contrário, parece-me que o problema não reside em como são fabricadas, mas na maneira como as idealizamos, e no próprio fato de que as idealizemos.
A democracia não pode ser vista como um ideal, e não foi feita, como dito, para realizar ideias pré-concebidas, mas sim para evitar os males, sempre muito maiores, que a absolutização dos ideais produz. Ela é uma proteção precária para, primeiro, evitar que, por esses ideais, uns tornem miseráveis as vidas de outros e, no limite, que nos matemos uns aos outros quase sempre com requintes de crueldade. Eventualmente, como fruto disso, quem sabe, resulta uma convivência coletiva virtuosa que melhora a vida da maioria.
A democracia não garante nada de antemão. Não garante igualdade, nem liberdade, nem justiça, nem progresso econômico. Além disso, é de fato, muitas vezes, reduzida a um discurso vazio usado para perpetuar injustiças. Disso não resulta, entretanto, que menos democracia - ou seu descarte puro e simples em favor de soluções autoritárias - resolva esses mesmos problemas.
Que os políticos se xinguem em público e se confraternizem em privado é uma virtude, antes de se tornar uma degenerescência. Que as ideologias se ofusquem no bojo das negociações é bom, antes de ser ruim. Que a política brasileira tenha sempre tendido aos acordos é um ganho, apesar de ter se convertido em problema (aliás, possivelmente, se não houvesse o centrão, já estaríamos em guerra civil). Nossa democracia vai mal, mas segue de pé. Os galhos tortos nascem do mesmo tronco de onde surgem ramos saudáveis, mas isso não significa que as raízes estejam podres.
Por isso, é preciso seguir repetindo: precisamos de mais democracia, não menos.