Não é nenhum segredo ou controvérsia o fato de que vivemos uma epidemia de doenças mentais.
Segundo a OMS, em seu
Informe de Saúde Mental, lançado em 2022, quase um bilhão de pessoas sofrem de algum tipo de transtorno mental, incluindo 14% dos adolescentes no mundo. Em 2019, o suicídio foi causa de 1% das mortes no planeta, e quase 60% deles aconteceram antes dos 50 anos de idade. No Brasil,
dados do Ministério da Previdência Social colocam problemas mentais, como ansiedade e depressão, entre as principais causas de afastamento do trabalho - foram quase meio milhão de pedidos em 2024.
As causas dessa epidemia são múltiplas e complexas, mas incluem a dissolução dos laços comunitários em todos os lugares, mas especialmente nas grandes cidades, algo que não teve origem com a virtualização da vida e das relações, mas que é aprofundado e acelerado pelas telas e pelas redes sociais.
A polarização política, que é também uma polarização de identidades, faz igualmente parte desse caldo. Percebemos cada vez menos elementos em comum com nossos vizinhos e colegas e nos voltamos à esfera privada e a identidades grupais e tribais em busca de sentido. Com isso, o ódio e o ressentimento se convertem em afetos sociais dominantes e passam a pautar nossas vidas cotidianas.
No meio de tudo isso, tivemos três anos de uma pandemia, em que todos convivemos de perto com a perspectiva real ou imaginada da morte, e com um distanciamento físico que agravou de forma traumática o isolamento e a anomia.
Mas essa epidemia tem a ver também, sobretudo, com a completa reorganização de nossos circuitos neurais de afeto, prazer e recompensas promovida pelos algoritmos das redes e pelo vício em telas, como mostra
Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova Iorque, no excelente e fundamental
A Geração Ansiosa.
O livro do professor Haidt, que felizmente tem estado entre os mais vendidos desde seu lançamento, é leitura incontornável. Focado no impacto da vida online sobre crianças e adolescentes e embasado em dados sólidos e incontestáveis, aponta que as redes sociais impedem cada vez mais o tipo de atividade e convivência que fomenta um desenvolvimento saudável das crianças. O amadurecimento infantil depende do aprendizado prático e grupal que está deixando de existir quanto mais aumenta o tempo de tela. Sem ele, impede-se inclusive a consolidação de circuitos neurais essenciais a uma vida adulta produtiva.
O resultado é uma geração cada vez menos hábil em termos sociais, enormemente ansiosa, menos resiliente, com um tremendo déficit de atenção e idealista no pior sentido que essa palavra pode ter. Pelo contato cada vez mais limitado com o mundo real, nossas crianças idealizam a vida e as pessoas de uma maneira que as condena à perpétua frustração.
Não é preciso entretanto demonizar a tecnologia. Desesperar-se tampouco ajuda. Lembro-me sempre de uma fala do falecido filósofo francês
Michel Serres em um
Roda Viva onde, perguntado sobre os efeitos nefastos da tecnologia, ele respondeu que não os temia porque na história da evolução humana toda mudança pode até trazer efeitos negativos, mas sempre abre também um campo novo de possibilidades. Serres exemplificava isso com a passagem de nossos ancestrais primatas de quadrúpedes a bípedes. Como quadrúpedes, o uso de suas mãos era limitado pela função primordial como apoio do corpo e base do deslocamento. Em consequência, usavam a boca para manipular objetos. Uma vez bípedes, as patas dianteiras puderam tornar-se mãos e permitiram uma sofisticada manipulação do mundo; libertada a boca, surgiu também a linguagem.
Portanto, é provável que a generalização do uso das tecnologias digitais e a crescente virtualização da vida tragam novos talentos, habilidades e possibilidades. Não devemos fechar os olhos, entretanto, para o fato de que, ao mesmo tempo, o ambiente real não mudou. Seguimos precisando negociar com ele os caminhos de nossas vidas. Trabalho, relações sociais e amorosas, e a construção da vida em comum não deixam de acontecer nesse real duramente concreto, a despeito de que uma parte cada vez maior de nossas vidas aconteça no mundo virtual. E privar nossas crianças da capacidade de operar nesse mundo inevitável é condená-las a enorme sofrimento e angústia.
Em relação às telas, à vida online e a seus efeitos negativos sobre a saúde mental, há ampla concordância, e um movimento vem acontecendo que precisa ser fortalecido. A aprovação com rara unanimidade entre governo e oposição da Lei no 15.100/2025, que proibiu o uso do celular em escolas, foi um bem vindo indicador e primeiro passo. O mesmo vem ocorrendo em vários países, com igual entendimento político em lugares igualmente polarizados. Movimentos de mães e pais por uma infância livre de celulares também vêm surgindo em toda parte.
Haidt e seus colegas sumarizam em quatro princípios as mudanças que precisam acontecer e que podem servir de orientação para famílias, escolas e para a ação política:
Norma 1: Sem smartphones antes do ensino médio (ou dos 14 anos)
O grande dilema e dificuldade dos pais nesse contexto está na pressão sofrida quando seus filhos são os únicos sem celular na escola. Como aponta Haidt, entretanto, isso é um clássico problema de ação coletiva que pode ser resolvido se pais começarem a conversar entre si e a se juntarem para agir. Se a questão é a necessidade de se comunicar com a criança, ele sugere dar um celular antigo sem acesso à internet.
Norma 2: Sem redes sociais antes dos 16 anos
O pior de tudo é a exposição intensa e frequente aos algoritmos das redes, estruturados para recompensar uma atenção flutuante e o vício, além de exporem as crianças continuamente a conteúdos obviamente inadequados e ao assédio de pessoas mal intencionadas. A Austrália foi o primeiro país a enfrentar o lobby das big techs e a estabelecer os 16 anos como idade mínima legal para criar perfis em redes sociais.
Norma 3: Escolas sem celulares
Esse é um ponto em que já avançamos no Brasil. O principal mérito da iniciativa é estimular a sociabilidade e as brincadeiras nos intervalos, quando antes todos corriam para os celulares ao soar do sino.
Norma 4: Mais independência, brincadeira livre e responsabilidade no mundo real
Como insiste Haidt, é durante a infância que desenvolvemos as habilidades necessárias para lidar com um mundo altamente complexo, e esse aprendizado é essencialmente prático e experimental.
Até recentemente, nossas crianças se educavam para a vida nas ruas, quintais e pátios de escolas por meio de brincadeiras e da experimentação e interação em grupos de indivíduos de idades próximas. É um processo de desafios, tentativa e erro, onde lidam com o medo e a curiosidade em uma dinâmica que efetivamente molda o cérebro humano, estabelecendo circuitos neurais que serão fundamentais para uma vida adulta produtiva e saudável. Estamos perdendo isso. Precisamos devolver nossas crianças ao mundo.
A boa notícia, como dito, é que há ampla concordância em torno do problema e de suas soluções. O maior obstáculo reside no poder das big techs que não têm nenhum compromisso com a saúde mental das crianças e possuem enorme influência sobre os legisladores.
Todavia, trata-se de um tema que, diferente de outros, não polariza o debate e tem enorme potencial para galvanizar a ação e impulsionar a carreira de políticos atentos e com um mínimo de sensibilidade para a angústia contemporânea das crianças e das famílias.
Para quem domina o inglês, Jonathan Haidt e alguns colegas mantêm um excelente
Substack cotidianamente atualizado com novos resultados de duas pesquisas e conselhos práticos para a ação. Há também uma recente e ótima entrevista sua ao
podcast do jornalista Ezra Klein, do The New York Times.